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De onde vem os cartórios

Comumente nos encontramos diante de coisas que sempre existiram e, vez por outra, nos perguntamos de onde vieram, como começaram? Assim são os registros públicos, que equivocadamente são por vezes referidos como herança portuguesa esquecida. É verdade que existiram e funcionam em terras lusas, além-mar, mas não nasceram aí. Os registros fazem sua própria história, mas seu surgimento pode ser confundido com o nascimento da própria civilização.

A preocupação com a publicidade imobiliária parece estar presente desde a transição da civilização pré-histórica. Na Mesopotâmia há indícios de procedimentos voltados a publicidade registral, bem antes do Código de Hamurábi (c. 1700 a.C.). Chega-nos informações acerca de contratos de transmissão imobiliária lavrados por escribas (notários) em tabuletas de argila, que apresentavam o selo do notário (kunuku). Essas tabuletas seriam entregues aos compradores em um recipiente contendo a inscrição da tampa e, muitas vezes, cópias eram guardadas por autoridades públicas (registros públicos). A Bíblia, em Jeremias, registra a formalidade da compra de um imóvel nos tempos de Nabucodonosor.

Nesta passagem, Javé ordena a Jeremias: “toma estes documentos, este contrato de compra, o exemplar selado e a cópia aberta e coloca-os em um lugar seguro, para que se conservem por muito tempo. Porque assim disseIahweh dos Exércitos, o Deus de Israel: ainda se comprarão casas, campos e vinhas nesta terra” (Jer. 32:14-15).

Uma forma bem sofisticada de publicidade registral existiu no antigo Egito. Os registros denominados katagrafeforam organizados na época ptolomaica, por volta do século III ªC, que tinham à frente funcionários encarregados do registro de contratos e da cobrança dos impostos. Já nesta época, os notários (que redigiam os contratos) eram obrigados a exigir certidões dos teminai (responsáveis pelos registros) para que se pudesse dispor de imóveis.

O mais antigo registro egípcio conhecido data do ano de 185 a.C. Nesta época, pagava-se de emolumentos o equivalente ao vigésimo do preço. Já sob o reinado de Evergetes II (140-120 a.C.), os emolumentos dobraram, elevando-se ao décimo do preço, sendo certo que ficavam a cargo do comprador. Na praxe egípcia se encontravam a escritura, o cadastro, o registro e o importo de transmissão, sendo exigência da lei que os contratos fossem depositados no conservador dos contratos. Chegou-nos um processo judicial egípcio no qual um tal Hermiasreivindica a propriedade de uma casa. Para tanto, alega a existência de uma lei segundo a qual os contratos egípcios não inscritos no Registro não tem valor.

Na Grécia antiga encontramos a presença dos mnemons e dos hieromnemons, que podem ser vertidos para o português como notários e arquivistas. Na Ática, marcos hipotecários teriam sido colocados em prédios, como forma de se dar publicidade do encargo. Em Rodes, por seu turno, nenhuma transmissão imobiliária era válida sem antes estar inscrita nos registros da cidade. Alguns autores chegam a identificar nos funcionários responsáveis pelos registros gregos a função qualificadora. Ou seja, fazia exame prévio no contrato, antes de admiti-lo para registro, rejeitando-o em caso de inconformidade (cf. Alvarez Suares, in Contrataction Escrita). 

A publicidade registral era de tal modo costume enraizada na cultura jurídica grega que se a estipulava nas convenções e tratados internacionais, como no primeiro tratado entre cartagineses e romanos: garantia-se a dívida dos comerciantes de passagem nas operações realizadas diante do registrador.

Desde a Bíblia até agora

Os antecedentes na Idade Média são também dignos de nota. Os Ostroghodos, sob o reinado de Theodorico, demonstram a realidade do pejorativo “bárbaros”, dando a devida importância à atividade notarial e registral e antecipando sua verdadeira função de preservação da paz social. Assim, Theodorico chega a dar mais importância ao ofício de notário do que o de juiz. Seu ministro, Cassiodoro (formula notarium e formula referendariorum, in Edictaregum ostrogothorum) sintetizou: os juízes decidem as lides; os notários evitam as lides, prevenindo-as por actoscontra as quais não haja reclamação (cf. João Mendes de Almeida Júnior, in Orgams da Fé Pública).

Carlos Magno, no século VIII, determinou que se instituíssem notários em cada lugar q eu os bispos e condes tivessem seus próprios notários. Na Alemanha, no século VII já se tem notícia de mosteiros e igrejas que mantinham livros de registros de propriedades imobiliárias – os ascendentes de nossos registros paroquiais.

O registro moderno, tal como o conhecemos, data de meados do século XIX, sendo instituído os revigorado ou modernizado nesta época em diversos países, inclusive o Brasil, Espanha e Portugal. Já a Rússia somente em fins do século XX veio a aperfeiçoar seu sistema registral, adotando, para tanto, o já testado e aprovado sistema brasileiro.

“Cuidado, companheiro. A vida é pra valer. Não se engane não É uma só. Duas mesmo, que é bom, ninguém vai dizer que tem, sem provar muito bem provado, com certidão passada em cartório do céu e assinado em baixo:“Deus”. E com firma reconhecida.” (Samba da Benção, de Badem e Vinícius). A prática registral, a credibilidade e a confiança nos cartórios, cantada e arraigada na mente popular deita suas raízes ao lado das raízes da própria civilização, e daí se legitima a nobre função do registrador e do notário, que acompanharam, testemunharam, contribuíram a registraram a evolução do homem e do Estado.

Colaboração do Estado

No Brasil, hoje em dia, os cartórios vão muito além de sua função de registrar. Os cartórios são hoje a mais efetiva máquina de fiscalização tributária do país. Ninguém comprar ou vende um imóvel sem que esta transação seja imediatamente informada à Receita Federal, seja pelo Notário ou pelo Registrador, para se verificar a compatibilidade das declarações de renda com o patrimônio. Nenhuma escritura é lavrada se não for apresentada a certidão de regularidade com o IPTU, além do pagamento do imposto de transmissão – ITBI. Se for feito por instrumento particular, este não será registrado sem estas comprovações. Nenhuma construção é averbada sem a comprovação do recolhimento das contribuições previdenciárias dos operários que trabalharam na respectiva obra com a apresentação no Registro de Imóveis da CND – Certidão Negativa de Débitos do INSS.

Graças aos Registradores Civis, que informaram gratuitamente ao INSS todos os óbitos ocorridos no mês, o sistema previdenciário brasileiro economiza milhões de reais com a suspensão imediata do pagamento de benefícios que, sem esta informação, continuariam a ser pagos indevidamente.

Qual o custo para o Estado deste exercício de fiscalização? Absolutamente nenhum. Quanto custaria trocar esta eficientíssima estrutura por contingentes de milhares de fiscais tributários – vale acrescentar que para cada Tabelião seriam necessários, no mínimo, um fiscal da Receita Federal, um fiscal da Fazenda Estadual, um fiscal da Fazenda Municipal e um fiscal de Previdência Social, além dos técnicos e de todo o corpo administrativo necessário para movimentar a máquina estatal.

Acrescente-se que, além de funcionarem como fiscais do Poder Público, os tabeliães ainda se tornam, nesta atividade, devedores solidários dos tributos que porventura deixarem de fiscalizar o devido recolhimento. Além de contar com o serviço gratuito destes “Fiscais”, as fazendas Públicas ainda multiplicam sua capacidade de arrecadação, com fundamento na RESPONSABILIDADE do notário ou registrador.

A responsabilidade de um dos pilares do sistema registral brasileiro, que é exemplo e modelo para o mundo. Os notários e registradores, além de responderem pessoalmente e solidariamente pelos tributos que têm obrigação de fiscalizar, são responsáveis diretos por todos atos praticados no cartório. Quando se reconhece uma firma, autentica-se um documento, lavra-se uma escritura, registra-se um imóvel, notifica-se uma pessoa, protesta-se um título, outorga-se uma procuração pública, em todos estes atos, muito além do carimbo do cartório, agrega-se a este documento uma espécie de seguro, baseado na responsabilidade e fé pública do Tabelião.

E esta responsabilidade, que garante efetivamente a segurança jurídica e econômica dos atos praticados sem cartório, é decorrência direta e imediata da autonomia e independência dos notários e registradores, que exercem a atividade em caráter privado por delegação do Poder Público. Somente a manutenção do modelo atual, do exercício privado da atividade, garante a eficiência dos serviços e a garantia da responsabilidade do Tabelião. Alem dos mais, assegura ao Estado a mais eficiente e segura estrutura de fiscalização, sem nenhum custo para os cofres públicos. Por estes motivos, países como Portugal querem seguir o modelo brasileiro, espanhol e chileno, entre outros, e por isso é cada vez mais forte o movimento de privatização dos cartórios portugueses.

Fonte: Jornal Tribuna do Brasil-DF - Por Luiz Magalhães - http://www.tribunadobrasil.com.br/